Gabriela Chaves. A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos.

Etienne Borges da Silveira

Luís Antônio Carvalho Gonçalves

 

Resenha:

 

A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos

 

O artigo tem como objetivo descrever a evolução do sistema internacional de propriedade intelectual e levantar as flexibilidades do Acordo TRIPS em relação a acessos de medicamentos e as restrições previstas no TRIPS–plus. Os marcos históricos que levaram as mudanças no sistema internacional de propriedade intelectual, foram a criação da CUP (1883), a Convenção da União Berna (1986) e Acordo TRIPS (1994). O direito à propriedade Intelectual nasce no séc. XIX, após a Revolução Industrial permitindo o controle de produção (através das patentes) e a distribuição das invenções (através dos sistemas de marcas).

Na CUP (Convenção da União de Paris) em 1883 é criado o sistema internacional de propriedade intelectual, envolvendo 11 paises. Baseia-se nos princípios da:

-Independência de Patentes significando que a patente concedida em um país não tem haver com a patente concedida em outro país.

-Tratamento Igual para Nacionais e Estrangeiros, todos os países da União teriam as mesmas vantagens presentes na legislação.

-Direito de Propriedade, garante ao requerente de uma patente o direito de prioridade no prazo de 12 meses.

A proteção de obras artísticas e literárias começa a ser tratada pela CUB em 1886. Em 1893 a CUP e a CUB se fundem e criam o Escritório Unificado Internacional para a Propriedade Intelectual e em 1970 da origem a OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual). A OMPI é uma agência da ONU que tem como objetivo dar apoio administrativo  às uniões intergovernamentais, promovendo em nível mundial a proteção da propriedade intelectual.

 

Acordo TRIPS e a OMC na Agenda do Comércio 

 

Após a II Guerra Mundial emerge um novo sistema econômico; para gerenciar esse sistema é criado o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

No ano de 1947 é assinado o GATT, Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreements on Tarifs and Trade) para diminuir as barreiras do comércio internacional, reduzir tarifas alfandegárias e minimizar a concorrência desleal. O Estados Unidos se consolida como potência econômica, porém com a queda do petróleo a partir da década de 70 Japão e Países Asiáticos começam a liderar a tecnologia. Os Estados Unidos passam então a impor sanções aos países que não concordassem com o comércio por eles estabelecido.

É importante ressaltar que o Japão ganhou competitividade com a imitação e uso adaptativo da tecnologia. Atendendo a interesses das indústrias norte-americanas de computadores, softwares, biotecnologia e produtos farmacêuticos incluem o tema de propriedade intelectual na Rodada Uruguai (1986-1994) culminando na criação da OMC e do Acordo TRIPS.

Características do Acordo TRIPS:

Regras sobre os direitos de propriedade intelectual

Não reconhece a liberdade de cada país

• Penaliza seus membros.

A partir do ano de 1995, todos os Estados (membros da OMC) precisam reconhecer patentes em todos os campos. Para minimizar o impacto causado pelo acordo a OMC recomendou que os Estados incorporassem todas as flexibilidades possíveis no Acordo TRIPS para proteger a saúde pública.

 

Flexibilidade do Acordo TRIPS em relação ao acesso de medicamentos.

 

Período de Transição 

 

O prazo de adequação da legislação depende do nível de desenvolvimento de cada país. Países menos desenvolvidos, que antes não tinham patentes reconhecidas para produtos farmacêuticos, teriam até 2016 para iniciar reconhecimento.

O Brasil começa a reconhecer patentes 1997 devido a pressões dos EUA.

 

Exaustão internacional de direitos e importação paralela

 

Um país pode importar um produto patenteado de outro país, desde que este produto tenha sido colocado naquele mercado pelo detentor de patentes ou com o seu consentimento. Parte da idéia de que o inventor já foi compensado no seu país de origem e seus direito foram “esgotados”. Permite que o país importe medicamentos de onde ele esteja sendo vendido a preço menor. (preços diferenciados em diferentes países).

 

Uso experimental e exceção Bolar 

 

Uso experimental utilizado para fins científicos, permitindo a pesquisa. A Exceção Bolar permite realizar testes para fins de obtenção do registro de comercialização em agências reguladoras, antes de expiração das patentes. Possibilitando a criação de medicamento genérico após a expiração da patente.

 

Licença Compulsória 

 

É uma autorização governamental que permite o uso do produto por terceiros sem o consentimento do titular da patente.

Justificativas: falta de exploração da patente, interesse público, situação de emergência nacional, mediar práticas competitivas e concorrência desleal, falta de produção local.

 

Participação do setor saúde no processo de análise dos pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos

 

A participação do setor de saúde no processo de análise dos pedidos de patentes do setor farmacêutico foi recentemente implementada no Brasil através da emenda a lei nº 9.279/1996 (Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial). Essa emenda pode ser vista como uma flexibilidade ao acordo TRIPS o qual no seu artigo 8º define como princípio o direito de os países membros da OMC “adotarem medidas necessárias para proteger a saúde pública e nutrição e para promover o interesse público em setores de vital importância para o desenvolvimento social-econômico e tecnológico, desde que compatíveis com o disposto no acordo”.

Com o intuito de prevenir concessões de monopólio injustificáveis, que podem acarretar aumento de preço e diminuição do acesso a medicamentos, o congresso nacional do Brasil aprovou a lei nº 10.196/2001 a qual instituiu a anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) nos processos de concessão de patentes do setor farmacêutico. Essa decisão foi muito criticada por representantes de empresas farmacêuticas transnacionais que alegavam desperdício de dinheiro público por envolver duas instituições na análise dos pedidos, o que acarretava atraso na emissão das patentes. O Brasil considerou esse mecanismo uma forma de proteger o interesse social de possíveis riscos a saúde pública e ao desenvolvimento tecnológico do país.

É importante que os países tenham mecanismos de proteção, pois empresas farmacêuticas acabam se beneficiando da fragilidade dos sistemas de patentes, através da obtenção de proteção patentária para processos e produtos que não atendem um ou mais requisitos da patenteabilidade, quais sejam: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Inclusive em relação ao pré-requisito novidade, um estudo realizado pelo National Institute of Health Care and Management (NIHCM) confirma essa realidade quando mostra que de um total de 1035 medicamentos aprovados pelo Food and Drug Administration (FDA) entre os anos de 1989 e 2000, 65% possuíam princípios ativos já existentes no mercado, 35% incluíam novas entidades moleculares e apenas 15% apresentavam alguma vantagem terapêutica. Os dados mostram o funcionamento inadequado do sistema de patentes que ao invés de promover a inovação, está promovendo investimento em produtos ou processos já existentes no mercado, gerando patentes que apenas vão garantir um bom retorno financeiro para os titulares.

 

O Período pós-TRIPS

 

No período em que a CUP era o principal instrumento internacional que orientava os sistemas de PI, os países signatários tinham autonomia para modificar suas legislações nacionais de modo a favorecer o desenvolvimento de setores tecnológicos. Reconheciam assim patentes em determinados setores considerados estratégicos. Com a entrada em vigor do acordo TRIPS ocorreu uma uniformização das legislações nacionais de PI de modo que o acordo não considerou os diferentes níveis de desenvolvimento tecnológico dos países membros da OMC. Nessa perspectiva, a PI representa mais um instrumento para promover a reserva de mercado das grandes empresas transnacionais.

A questão do acesso a medicamentos entra na agenda do comércio     internacional em novembro de 2001, durante a IV Conferência Ministerial da OMC, em Doha. Nessa conferência foi aprovada a declaração de Doha cujo objetivo foi tornar possível, para os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, a implementação de todas as flexibilidades previstas no acordo TRIPS relacionados à proteção a saúde. Em 30 de agosto de 2003, foi aprovada uma decisão no âmbito da OMC, intitulada Implementação do Parágrafo 6 da Declaração de Doha sobre o acordo TRIPS e Saúde Pública, que ao final de 2005 tornou-se uma emenda ao acordo TRIPS.

Essa implementação permite que países membros da OMC e classificados como país importador de uma determinada tecnologia, possam emitir licença compulsória para importar um produto patenteado, de um país membro “exportador” que tenha emitido uma licença compulsória para realizar a exportação, resolvendo assim o problema dos países que não tinham como produzir a tecnologia no seu próprio território e também não podiam importar, já que o acordo TRIPS estabelecia que o objeto alvo de licença compulsória deveria atender predominantemente o mercado interno. Entretanto apesar da declaração de Doha ter fortalecido internacionalmente a liberdade dos países em incorporar flexibilidades de interesse para a saúde, a decisão de 30 de agosto de 2003 e sua posterior emenda ao acordo TRIPS vêm sendo fortemente questionadas quanto à sua concreta possibilidade de contribuir para a promoção de políticas públicas de acesso a medicamentos.

 

Os dispositivos TRIPS-plus

 

O acordo TRIPS mesmo prevendo flexibilidades é constantemente alvo de mecanismos que impedem que essas flexibilidades sejam efetivamente implementadas. Os TLC (Tratados de Livre comércio) são um exemplo disso, uma vez que incluem dispositivos mais restritivos dos que aqueles previstos no acordo TRIPS, chamados de TRIPS-plus. Destacam-se alguns dispositivos TRIPS-plus diretamente relacionados ao setor farmacêutico: Vigência das patentes acima de 20 anos, vínculo entre patentes e registro, restrições para o uso de licenças compulsórias, proteção dos dados não divulgados para obtenção de registro sanitário, restrições para a matéria patenteável e restrições para a revogação de patentes. Cada um desses dispositivos complicam mais ainda as possibilidades de flexibilidade do acordo TRIPS uma vez que incluem mais restrições, mais barreiras que acabam sempre  favorecendo os detentores das patentes e prejudicando a entrada de concorrentes de medicamentos no mercado.

 

 

Considerações finais

O modelo atual de proteção industrial tem sua origem no século XV quando os industriais reivindicaram o controle sobre a produção de bens manufaturados. Com a intenção de aumentar os lucros passam também a requerer o controle sobre a distribuição e a comercialização dos seus produtos, papel até então exercido pelos comerciantes, mediante a criação de um sistema de marcas. Nasce então no século XIX à propriedade industrial. Após a revolução industrial ocorre um aumento expressivo da produção de bens manufaturados havendo incremento no fluxo de comércio internacional. Sem regras internacionais para controlar esse sistema que avançava fortemente principalmente na Europa e mais uma vez objetivando-se o lucro e o controle, cria-se em 1883 a CUP que estabelece pela primeira vez, regras para um sistema internacional de propriedade industrial. Mesmo tendo a CUP passado por várias revisões, sempre respeitou a autonomia dos países signatários de decidir sobre o regime de proteção que melhor atendesse aos interesses sociais, tecnológicos e econômicos dos países.

No final do século XX, outra vez por reivindicação de setores industriais sediados em países desenvolvidos o sistema internacional de PI sofre importantes mudanças com a assinatura do acordo TRIPS, acabando com a autonomia nacional sobre a propriedade intelectual. De lá para cá, todos os campos entram na lei de Pi e na lógica do comércio englobando entre outras coisas, cultura, agricultura, educação, bem como todos os sistemas tecnológicos de produção como o setor farmacêutico que vai interferir diretamente no campo da saúde. As regras e flexibilizações previstas no acordo tornam-se cada vez mais complexas e favoráveis aos detentores das patentes, prejudicando, no caso da indústria farmacêutica, o acesso a medicamentos, principalmente as populações mais pobres, devido ao aumento dos preços provocados pela diminuição da concorrência.

Neste contexto existe um forte movimento em curso para tornar o sistema de proteção da PI cada vez mais favorável ao titular da patente o que diminui o direito das populações de terem acesso a novas tecnologias que podem prolongar ou salvar vidas. Assim a grande questão que se coloca é se existe um equilíbrio possível entre o necessário estimulo a inovação, mediante proteção patentária e o direito ao acesso aos produtos patenteados pela maioria de pessoa que deles necessitam. É preciso então que se tenham recursos humanos capacitados para atuar nas arenas de negociação e nos processos de implementação e transação desses acordos. É preciso também desenvolver estudos sobre as suas implicações para o acesso a medicamentos de modo a identificar experiências e estratégias que possam ser compartilhadas e implementadas com o objetivo de minimizar os efeitos adversos.