Apontamentos para discuss\u00e3o do texto de Marilyn Strathern, \u201cImagined Collectivities and Multiple Authorship\u201d<\/p>\n
Observa\u00e7\u00e3o inicial: o Malanggan \u00e9 uma escultura que serve como um deposit\u00e1rio da for\u00e7a vital da pessoa morta, como uma esp\u00e9cie de \u201ccorpo\u201d ou \u201cpele\u201d O esp\u00edrito est\u00e1 prestes a se tornar um ancestral, e ent\u00e3o o malanggan \u00e9 esculpido numa forma reconhec\u00edvel para o cl\u00e3 do falecido. Depois de algumas horas, ou dias, eles s\u00e3o destru\u00eddos, e a for\u00e7a vital libertada.<\/p>\n
Nas sociedades onde os Ocidentais acham que pode existir propriedade coletiva, o antrop\u00f3logo acaba encontrando pouca coisa relacionada a id\u00e9ia de livre acesso, mas muito no que diz respeito a quest\u00f5es de autoria e criatividade.<\/p>\n
A autora cita um exemplo de um embriologista que coloca a quest\u00e3o do genoma humano como uma propriedade coletiva, afirmando que s\u00e3o as coisas em comum que temos no nosso mapa gen\u00e9tico com todas as outras pessoas que constituem nossa propriedade e heran\u00e7a coletivas, que \u00e9 tanto uma caracter\u00edstica da esp\u00e9cie humana como algo que \u00e9 possu\u00eddo em comum, e que todos os seres humanos tem que ser consultados em rela\u00e7\u00e3o a qualquer coisa que se fa\u00e7a em rela\u00e7\u00e3o a isso.<\/p>\n
Nessa rede \u2018gen\u00e9tica\u2019, o que acaba acontecendo \u00e9 um fluxo de informa\u00e7\u00e3o, que une as pessoas no tempo e no espa\u00e7o.<\/p>\n
O outro exemplo que ela traz \u00e9 o do Malanggan, neste caso, de um que n\u00e3o foi esculpido, mas tran\u00e7ado com fibras, e feito em 2000. Esse Malanggan foi feito usando o modelo de um outro Malanggan que existia na mem\u00f3ria de quem o encomendou. O que Strathern argumenta \u00e9 que, quando ele toma essa nova forma, ele acaba incorporando outras imagens. E que n\u00e3o h\u00e1 reivindica\u00e7\u00f5es em rela\u00e7\u00e3o a coletividade ou a subst\u00e2ncias compartilhadas nesse momento – o que se poderia falar \u00e9 de m\u00faltiplos autores. A pessoa que encomendou o Malanggan almeja reproduzir um que viu anos atr\u00e1s, e pelo qual pagou para ver. Por sua vez, a nova imagem \u00e9 agora vista por uma nova gera\u00e7\u00e3o, que a carrega na mem\u00f3ria. Ou seja – uma rede \u00e9 estabelecida atrav\u00e9s desse pagamento. A forma (a escultura em si) \u00e9 destru\u00edda, mas sua imagem \u00e9 guardada pra sempre e viaja no tempo e no espa\u00e7o.<\/p>\n
O embriologista sup\u00f5e que essa propriedade em comum do genoma confere direitos, relacionados principalmente ao conhecimento quando se toma decis\u00f5es sobre o genoma humano. Ele tanto poderia ter dito que ningu\u00e9m possui o genoma como que todo mundo o possui, e escolheu a segunda op\u00e7\u00e3o. Em um regime baseado na propriedade, as duas formula\u00e7\u00f5es s\u00e3o poss\u00edveis. Partindo dessa premissa a autora prop\u00f5e que se explore o que se pode aprender em regimes n\u00e3o-propriet\u00e1rios, e escolhe Papua Nova Guin\u00e9, que recentemente entrou na WIPO.<\/p>\n
\u00c9 o tipo de lugar que se pode at\u00e9 esperar encontrar algum tipo de coletividade indiferenciada, de propriedade comunal dos recursos, mas na realidade nao tem nada disso.<\/p>\n
O genoma \u00e9 imaginado tanto como uma rede coletivo como uma propriedade. E essa propriedade n\u00e3o \u00e9 mercadoriz\u00e1vel ou transfer\u00edvel como tal: se reivindica a propriedade coletiva justamente para evitar que pessoas ou corpora\u00e7\u00f5es peguem peda\u00e7os disso como recursos utiliz\u00e1veis somente para eles pr\u00f3prios, imbutindo direitos de propriedade privados. Os interesses coletivos permanecem indivis\u00edveis, indiferenci\u00e1veis, e s\u00f3 utilizaveis passivamente. Em contraste, os sistemas que produzem os Malanggans acabam divididos entre diferentes reivindica\u00e7\u00f5es o tempo todo. Mas n\u00e3o atrav\u00e9s da propriedade privada, pois essas reivindica\u00e7\u00f5es s\u00e3o entendidas como abarcando interesses m\u00faltiplos, e n\u00e3o individuais.<\/p>\n
Strathern afirma que est\u00e1 pensando tudo isso para justamente prop\u00f4r uma analogia com os movimentos de software livre e as reinvidica\u00e7\u00f5es sobre as inven\u00e7\u00f5es e inova\u00e7\u00f5es nos softwares.<\/p>\n
Em Papua Nova Guin\u00e9 existem in\u00fameras circunst\u00e2ncias nas quais as pessoas pagam pelas coisas (incluindo pelo conhecimento e habilidade art\u00edstica). E um grande interesse \u00e9 colocado nas coisas adquiridas por transa\u00e7\u00f5es e principalmente em manter esse fluxo. Emprestar, compartilhar, trocar, s\u00e3o todas coisas feitas atrav\u00e9s de pagamentos.<\/p>\n
Um exemplo \u00e9 quem v\u00ea o Malaggan. Estes podem reproduzir o design que viram, mas outros n\u00e3o. D\u00e1 at\u00e9 para roubar o design alheio, mas n\u00e3o d\u00e1 para vender o SEU design, j\u00e1 que ele s\u00f3 serve para o dono original. Ele n\u00e3o pode vender, mas pode passar adiante. Os que pagam adquirem o poder criativo de reproduzi-lo de novo, l\u00e1 adiante. Essa reprodu\u00e7\u00e3o \u00e9 um esfor\u00e7o colaborativo por duas raz\u00f5es: 1) a imagem \u00e9 carregada por uma pessoa, mas esculpida por outra. Ningu\u00e9m materializa a pr\u00f3pria imagem, \u00e9 um empreendimento conjunto. 2) A colabora\u00e7\u00e3o na verdade vem atrav\u00e9s do tempo j\u00e1 que a pessoa que manda fazer a imagem est\u00e1 relembrando a ocasi\u00e3o passada em que ela foi feita. Uma esp\u00e9cie de colabora\u00e7\u00e3o com delay.<\/p>\n
A apari\u00e7\u00e3o publica do Malanggan \u00e9 muito r\u00e1pida, e s\u00f3 dali muuitos anos o ele aparece de novo. Esse momento de apari\u00e7\u00e3o \u00e9 definitivo, porque garante o futuro do objeto nas mem\u00f3rias dos outros. \u00c9 um ato criativo, procriativo. Ou seja, esse recipiente da for\u00e7a vital \u00e9 tamb\u00e9m um mapa no qual os Malaggans inscrevem suas alian\u00e7as antecipadas. Os futuros donos de Malaggans recebem conhecimento, que vai ser colocado em exist\u00eancia no futuro. \u00c9 um fluxo r\u00e1pido quando o conhecimento \u00e9 passado e uma longa parada na qual ele fica morando nas cabe\u00e7as das pessoas.<\/p>\n
E assim o fluxo resulta em Malanggans dispersos nas mentes das pessoas atrav\u00e9s do tempo e espa\u00e7o. Um design quando finalmente toma forma acaba combinando-se com outros elementos e acaba sendo a forma pr\u00f3pria daquela pessoa somente, apenas \u201clembrando\u201d o Malanggan original.<\/p>\n
Cada figura junta as identidades dispersas dos mortos numa fabrica\u00e7\u00e3o que junta as mem\u00f3rias do passado; e s\u00e3o, ali, redistribu\u00eddas para uma nova gera\u00e7\u00e3o, uma rede de pessoas criadas n\u00e3o mais pela sua intera\u00e7\u00e3o com o morto mas atrav\u00e9s da sua vis\u00e3o da imagem. Ou seja, h\u00e1 uma altern\u00e2ncia entre momentos em que as identidades s\u00e3o dispersas e momentos em que elas s\u00e3o condensadas e juntadas.<\/p>\n
– O Malanggan faz com as pessoas o que o modelo de c\u00f3digo aberto tenta fazer com o software??<\/p>\n
Eles s\u00e3o reproduzidos atraves de pessoas dispersas atrav\u00e9s do tempo e do espa\u00e7o; o c\u00f3digo aberto diz respeito a otimizar as contribui\u00e7\u00e3o de individuos dispersos, em rela\u00e7\u00e3o a distribui\u00e7\u00e3o de um produto. Mas para este se reproduzir, ser colocado em pr\u00e1tica como um produto, ele tem que ganhar uma forma, se materializar, virar uma t\u00e9cnica. Ent\u00e3o o usu\u00e1rio combina os elementos pra que isso aconte\u00e7a. Do ponto de vista da distribui\u00e7\u00e3o do software, o usu\u00e1rio \u00e9 o elemento oculto – at\u00e9 o momento em que transforma o produto em uma forma utiliz\u00e1vel (mesmo que super tempor\u00e1ria) – o que poderia se considerar um \u201cmomento de apropria\u00e7\u00e3o\u201d, em uma economia baseada na propriedade.<\/p>\n
Duas coisas s\u00e3o escondidas no Malanggan antes dele ser mostrado. Primeiro, a imagem s\u00f3 \u00e9 vista na mem\u00f3ria de quem pagou pra ver. Segundo, todo o trabalho em que sua cria\u00e7\u00e3o consistiu \u00e9 feito escondido, e a imagem que \u00e9 passada \u00e9 s\u00f3 dele pronto, n\u00e3o da cria\u00e7\u00e3o. (Recria-se a perda do falecido atrav\u00e9s da destrui\u00e7\u00e3o da figura material e do trabalho que a criou.) (Uma compara\u00e7\u00e3o com o trabalho escondido do Editor do c\u00f3digo aberto – uma tarefa essencial por\u00e9m n\u00e3o sempre revelada).<\/p>\n
No per\u00edodo em que a imagem est\u00e1 escondida na mente, ela acaba crescendo, mudando, etc. Mas claro, existem inova\u00e7\u00f5es apropriadas e as n\u00e3o apropriadas que podem ser feitas no Malanggan, que p\u00f5em em jogo sua pr\u00f3pria efic\u00e1cia.<\/p>\n
Strathern conta uma hist\u00f3ria de quando os habitantes de uma vila compraram as palavras e esculturas de um esp\u00edrito dos seus vizinhos, que foram pagos numa cerimonia p\u00fablica. A transa\u00e7\u00e3o possibilitou que os compradores dan\u00e7assem e cantassem em nome do esp\u00edrito, al\u00e9m de passarem-no adiante e desfrutarem dos pagamentos que viessem disso. (Contraste com direito de uso mas n\u00e3o de venda). Os que venderam n\u00e3o perderam nada, porque continuaram usando o esp\u00edrito. A \u00fanica condi\u00e7\u00e3o \u00e9 que n\u00e3o poderiam mudar em nada as m\u00fasicas para respeitar o esp\u00edrito. Numa nova comunidade, novas formas para o esp\u00edrito poderiam ser sonhadas e criadas. Embora uma inova\u00e7\u00e3o possa ter um \u00fanico criador, ela \u00e9 possuida pela comunidade toda, que seria toda paga caso esta fosse transferida para ainda outro grupo.<\/p>\n
Possuindo o esp\u00edrito, eles podem submet\u00ea-lo \u00e0 elabora\u00e7\u00e3o criativa, mas que n\u00e3o \u00e9 feita em p\u00fablico. S\u00f3 a FORMA re-criada \u00e9 cantada ou dan\u00e7ada quando a situa\u00e7\u00e3o pede. Ou seja, o crescimento, a criatividade, ocorrem fora do olhar p\u00fablico. A forma mostrada pode ser original e derivativa ao mesmo tempo. O importante \u00e9 que a fonte de onde o espirito veio \u00e9 reconhecida.<\/p>\n
As transa\u00e7\u00f5es feitas na transfer\u00eancia liberam o conhecimento para ser usado mas tambem colocam a forma numa ventura colaborativa, tornando evidente \u201cm\u00faltiplos\u201d originadores. A cria\u00e7\u00e3o toma destina\u00e7\u00f5es m\u00faltiplas, nas pessoas que assistem ela ser mostrada. Os objetos s\u00e3o propagados conforme se tornam anexados a novas pessoas. E \u00e9 o pr\u00f3prio processo de derivar uma nova performance de uma pr\u00e9via que lhe d\u00e1 validade.<\/p>\n
Essa \u00e9 a grande quest\u00e3o enfrentada pelo copyright das formas art\u00edsticas da Papua Nova Guin\u00e9: o copyright pode declarar a originalidade, mas n\u00e3o lida com o outro lado da equa\u00e7\u00e3o \u2013 a de que o trabalho tem uma natureza derivativa.<\/p>\n
Trata-se do que ela chama de \u201cautoria m\u00faltipla\u201d (embora ela questione se o termo autoria \u00e9 certo) \u2013 essa transmiss\u00e3o de pessoa a pessoa \u00e9 uma coisa bastante tradicional na Papua Nova Guin\u00e9. Uma esp\u00e9cie de \u201cmodo de colabora\u00e7\u00e3o\u201d, em que uma imagem, narrativa ou hist\u00f3ria n\u00e3o vale nada sozinha, precisa sempre ser complementada com algo da pessoa. \u00c9 a pessoa ouvindo a hist\u00f3ria que cria o resto dela. Ou seja, uma rela\u00e7\u00e3o \u00e9 estabelecida, na qual conhecimento \u00e9 criado. A transmiss\u00e3o \u00e9 algo instrumental \u00e0 cria\u00e7\u00e3o. S\u00f3 que o processo dessa nunca \u00e9 revelado em publico. Mas o que \u00e9 mantido escondido pode ter tanto valor quanto o que \u00e9 revelado.<\/p>\n
Os regimes de propriedade intelectual usam a recompensa financeira como a justifica\u00e7\u00e3o pra a criatividade. Essa id\u00e9ia \u00e9 frequentemente contraposta a id\u00e9ia de disponibilidade comum. Ou a id\u00e9ia de que primeiro o inventor tem que lucrar com a id\u00e9ia, e assim as pessoas podem usar o produto, por um pre\u00e7o, mas nao o reproduzir. O que o movimento de c\u00f3digo aberto quer fazer \u00e9 acabar com essa restri\u00e7\u00e3o, para que coisas transferidas sem lucro tenha um fluxo sem restri\u00e7\u00e3o. Compara\u00e7\u00e3o dom\u00ednio p\u00fablico e genoma humano. (Um dom\u00ednio imaginado).<\/p>\n
Em Papua Nova GUin\u00e9 evita-se os regimes de IPR porque eles trazem tudo para o olhar p\u00fablico. A restri\u00e7\u00e3o limitada dos IPR n\u00e3o \u00e9 nada comparada com tudo o que se tem livre depois que o copyright expira. Principalmente itens relacionados com grupos espec\u00edficos, que s\u00f3 devem ser revelados em situa\u00e7\u00f5es controladas. \u00c9 a quest\u00e3o do dom\u00ednio p\u00fablico dos IPR que causa problemas para esse tipo de coisa.<\/p>\n
Claro que esses momentos de reprodu\u00e7\u00e3o do Malanggan tem seu aspecto p\u00fablico, mas \u00e9 uma coisa diferente.<\/p>\n
Em rela\u00e7\u00e3o ao software, a valida\u00e7\u00e3o implica confiabilidade e responsabilidade. Validar dados significa transform\u00e1-los em conhecimento, mas permite uma inst\u00e2ncia cr\u00edtica. E aqui ela coloca a necessidade de uma rede que se veja como uma comunidade. Porque talvez uma comunidade definida por seu livre acesso \u00e0s fontes deva ser uma comunidade definida por conhecimento de suas fontes. \u201cComunidades de interesse ajudam a separar o que \u00e9 significativo\u201d.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
Apontamentos para discuss\u00e3o do texto de Marilyn Strathern, \u201cImagined Collectivities and Multiple Authorship\u201d Observa\u00e7\u00e3o inicial: o Malanggan \u00e9 uma escultura que serve como um deposit\u00e1rio da for\u00e7a vital da pessoa morta, como uma esp\u00e9cie de \u201ccorpo\u201d ou \u201cpele\u201d O esp\u00edrito est\u00e1 prestes a se tornar um ancestral, e ent\u00e3o o malanggan \u00e9 esculpido numa forma … <\/p>\n