FOUCAULT, Michel. O que é um autor? (1969) In: Ditos e Escritos – Estética: literatura e pintura; música e cinema. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2006.
Na conferência O que é um autor?, Michel Foucault se propõe a “analisar a maneira pela qual a função autor se exercia, no que se pode chamar de a cultura européia após o século XVII”, definindo sua empreitada no âmbito da análise do discurso e excluindo a análise histórico-sociológica do personagem do autor. É importante ressaltar que Foucault não se propõe a apresentar uma teoria da função-autor, mas indicar as linhas gerais de uma possibilidade de análise dessa categoria.
O texto aponta para dois pontos de partida dessa análise: de um lado, o reconhecimento da própria “imprudência” em As Palavras e as Coisas (1966), trabalho no qual Foucault reconhece ter utilizado ingenuamente as unidades do autor, da obra e do livro para analisar as condições de funcionamento de práticas discursivas específicas, para o que essas unidades em si não interessam a não ser como funções discursivas. De outro, a indiferença contida na formulação de Becket “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”, na qual Foucault identifica um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea, na medida em que funciona como uma regra que domina a escrita como prática. Diante do desaparecimento ou apagamento do autor e das duas noções que, aparentemente estariam destinadas a substituí-lo [obra e escrita], Foucault argumenta que a unidade autor é reatualizada tanto na obra quanto na escrita. Grosso modo, a obra traz dificuldades quanto à possibilidade de ser definida sem referência a um autor – seu autor; a escrita, mesmo o estatuto originário do autor para si mesmo, recoloca, em outros termos, a necessidade de algo no qual a criação se funde.
Essa constatação é seguida por um “mas” [“mas não basta repetir a afirmação vazia que o autor desapareceu] que marca a entrada no segundo momento da exposição, aquele no qual Foucault procura definir a função-autor. “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior da sociedade”, na medida em que o nome do autor, para além do nome próprio, exerce uma função classificatória no interior do discurso, permitindo que certos textos sejam reagrupados, delimitados ou opostos entre si [relações de filiação, de autenticação recíproca, de exclusão], bem como definindo um modo de ser do discurso que poderíamos dizer não-cotidiano, extra-ordinário, não-anônimo.
Foucault aponta quatro características da função-autor:
i) os discursos portadores da função-autor são objetos de apropriação pelo que ele denomina “regime de propriedade para os textos” – no final do século XVIII e início do XIX. A função-autor está ligada ao sistema jurídico-institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos.
ii) a função-autor não é exercida universal e constantemente em todos os discursos, em todas épocas e sociedades. Por exemplo, na Idade Média, os textos literários não dependiam da autoria enquanto que os ditos científicos eram marcados pelo nome do autor; já entre os séculos XVII-XVIII, o discurso científico promove o apagamento da função-autor, enquanto que o literário é por esta provido.
iii) a função-autor não remete pura e simplesmente a um indivíduo real; ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, várias posições-sujeito que classes de diferentes sujeitos podem ocupar.
iv) a função-autor não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações complexas e específicas.
Um terceiro momento do texto é a conceituação do que ele, arbitrariamente, reconhece, chama de instauradores ou fundadores de discursividade, os quais diferenciando-se dos “grandes autores” ou dos fundadores das ciências, ocupam uma posição transdicursiva na ordem do discurso; seus textos funcionam como a possibilidade e a regra de formação de outros textos, “abrem espaço outra coisa, diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram”. Foucault reconhece Freud e Marx como dois desses instauradores. Enquanto que a fundação de uma cientificidade pode ser introduzida ulteriormente no discurso que a funda, a instauração de uma discursividade é heterogênea às suas transformações ulteriores porque estabelece, ela mesma, um número limitado de possibilidades (exigência do “retorno à origem”). O retorno à origem é uma costura enigmática entre a obra e o autor que encontra sua justificativa no valor instaurador do texto, retornando assim às potencialidades contidas nesse texto fundador, ao que está e ao que não está nele.